Texto por Igor Monteiro
Era uma tarde qualquer de julho na agência em que eu trabalhava quando a Ju Trevisan lançou a bomba no grupo de WhatsApp da Rapadura. Fábio de Carvalho, amigo nosso de anos e dotado de um talento ímpar entre os músicos da minha geração, propôs que ele viesse tocar aqui em São João del-Rei acompanhado de ninguém mais ninguém menos que Jair Naves.
Lembro muito bem o dia que o Vinícius Batista, meu amigo e parceiro de banda, me apresentou ao Ludovic. O Vinícius sempre gostou de coisas esquisitérrimas, mas esse som cavernoso, marcadamente punk ou pós-punk me pegou de primeira. E desde então o Ludovic passou a ser a referência número um pra nossa banda e o Jair Naves, vocalista, o maior poeta desse país pra gente.
Havia um dilema muito grande em trazer o Jair e o Fábio pra cá em setembro (data que o Fábio pediu) porque as casas de show sanjoanenses haviam sido literalmente aniquiladas pela pandemia. Estávamos naquela vibe bem apocalíptica mad max no segundo semestre de 2022. A sorte é que o André Mendes, que já havia tocado comigo antes, tinha uma escola de música que podia funcionar bem como um espaço de show mais reduzido. Entrei em contato com ele e ele prontamente se dispôs a alugar o Arte Galpão pra gente. O problema era providenciar o backline dos caras, instrumentos que a gente não tinha ou equipamentos que não possuíamos. Mas eu prometi pra todo mundo que ia conseguir arrumar e tentei ser transparente o tempo inteiro com o Fábio (que tava respondendo pelo Jair também) o que eu ia ou não ia conseguir descolar.
Eles confiaram e marcamos a data, com a proposta de que a minha banda tocasse também, mesmo que de graça, pra não comprometer o faturamento dos caras. Mas a gente precisava sentir essa emoção.
Consegui um excelente amplificador e mais dois PAs pra servir de retorno com o Matheus Lopes e a Aninha, amiga nossa, emprestou um teclado FODASSO dela. O Renan Brodinho ainda se dispôs a ajudar a operar o som totalmente de graça também. Galera, se vocês querem fazer alguma coisa na cena tenham BONS amigos, mas pessoas de boa índole mesmo e de caráter, que uma mão sempre vai lavar a outra.
Depois de várias noites mal dormidas com a pressão de saber que até gente de Goiás estava vindo somente para ver o show, no dia anterior eu ainda estava descrente que isso tava acontecendo mesmo e me boicotava acreditando que o pior ia acontecer e o trem ia ser desmarcado de última hora. Conversa, porque na noite anterior já estávamos ralando horrores pra fazer tudo acontecer e todo mundo da minha banda se juntou pra deixar o som mais ou menos montado e organizou o Arte Galpão pra que virasse um bar/casa de show da noite pro dia, literalmente.
E aí na manhã do dia seguinte fomos lá pra passar o som primeiro (eu sugeri que a Remédio tocasse por último pra que caso algum vizinho reclamasse o show a ser sacrificado fosse o nosso) e o Renan já tava lá na hora marcada pra ajudar a gente. E aí enquanto a gente tava passando o som chega o Jair Naves DO NADA, vindo em nossa direção e de braços cruzados ouvindo a gente tocar. Uma visão chocante e que eu jamais vou esquecer, mas que na hora pegou a gente tão desprevenido que eu morri de vergonha e paramos tudo pra ir lá dar um oi pro cara.
Fingindo uma naturalidade absurda, trocamos uma ideia rápida e já prontamente levei eles lá pra casa da Ju que ficava bem ao lado do Arte Galpão, o que facilitou demais a logística também. De repente eu tava no carro dos caras trocando ideia com a maior facilidade do mundo com o Jair e banda.
Voltei lá pra passagem a pé e extasiado, pouco podia acontecer pra dar errado dali em diante. E todo mundo tava ralando pra caralho: geral da banda pronto pra ficar vendendo bebida a noite inteira, pronto pra receber todo mundo e a Flávia e a Ju fortalecendo demais, além do Renan que tirou uma sonzeira da porra a troco de absolutamente nada, e ficou o dia inteiro lá dando moral. Do começo ao fim.
O Fábio também chegou direitinho, acompanhado da Aldan, que eu iria descobrir em breve que seria a banda mais alta que eu já ouvi na minha vida. Eles passaram o som elogiando tudo o que a gente tinha conseguido e que estava sendo o melhor backline da tour até então. O Jair inclusive ficou assustado com tudo o que a gente tinha conseguido na raça e me falou que o backline que tava rolando era só para festivais realmente grandes, e que não faria mal algum faltar uma coisa ou outra ou mesmo que os equipamentos não tivessem a mesma qualidade. Essa modéstia do Jair seria uma qualidade que eu tava descobrindo naquele momento.
Até camarim a gente montou pra receber eles, porque sobrou um quarto lá no Galpão com ar condicionado e sofá. O Jair principalmente ficou super emocionado com isso. Mas também quem não ficaria emocionado com um pãozinho de queijo sanjoanense e cafézinho?
Foi chegando a hora do show e por incrível que pareça não tinha muita gente, mas o suficiente pra encher o Galpão e o suficiente pro Jair se sentir no lugar mais aconchegante do mundo naquele sábado.
Dava pra ver na cara das pessoas o quanto elas estavam incrédulas quando eu desci do carro com eles. A gente tinha conseguido mesmo! Caralho! Até hoje é difícil de acreditar.
O Fábio e banda começaram a tocar e ali eu estava sentindo duas coisas: estava presenciando um show revolucionário e estava desesperado caso os vizinhos reclamassem e o rolê terminasse ali. Mas Deus estava com a gente nesse dia e deu tudo certo, o Fábio entregou um show apoteótico, com direito a berros, noise, pianinho e entrega de maneira geral. Ele estava totalmente diferente do Fábio retraído que conhecemos em 2016, na ocupação da UFSJ. Acompanhamos de perto a evolução de um artista foda.
Chegou a hora do Jair tocar e naquela humildade toda quase pedia desculpas por fazer alguma última exigência. E aí ele começou a marretar no piano uma canção do seu último disco recém lançado até então. A partir dali o que aconteceu foi mágico, o melhor show que eu já vi na minha vida, com um repertório infindável de clássicos da carreira solo dele e com aquele Jair de sempre rolando no chão e indo pro meio da galera.
Quando a minha banda foi tocar, minha vontade era de pedir desculpas pra todo mundo por ser a Remédio Sem Causa a fechar aquele rolê incrivel. No fim das contas a gente fez um bom show também com direito a abracinho em mim do Jair agradecendo pela homenagem que fizemos. Cheguei a cogitar tocarmos algum clássico do Ludovic mas ficamos com receio de parecer forçado demais e até meio anacrônico. Achamos mais verdadeiro simplesmente que eu falasse o que ele representava pra banda.
O rolê mais emocionante das nossas vidas estava terminando e haja cerveja pra aguentar mais tantas ideias trocadas com quem ainda aguentava fazer mais alguma coisa, principalmente nosso querido Lucas, baterista do Jair.
Amanheceu e Jair e banda foram passear nas ruas históricas de São João, um rolê quase que obrigatório pra qualquer um que visite a cidade mas que é praticamente impossível pra 90% dos artistas que vem pra cá simplesmente porque não dá tempo mesmo. Eles ficaram encantados com a cidade.
Antes de partirem, os meninos da Aldan vieram comentar o quanto tinham gostado da nossa banda, opinião inteiramente recíproca, e o Jair veio elogiar também, destacando as letras - acho que ele ainda não sabia que a nossa maior referência lírica era ele. Gostou de uma camiseta também e já tava nos nossos planos mesmo presenteá-lo com uma.
Enquanto o carro ia embora eu e Ju ficamos olhando um pro outro ainda incrédulos que tudo tinha acontecido mesmo. Passamos o resto do dia comentando sobre como tinha sido enquanto passávamos pano de chão lá no Galpão, por exemplo, saber que o Jair Naves estava num quarto ao lado do nosso na casa dela. E a gente descobriu que havíamos feito um dos nossos melhores amigos da nossa breve trajetória musical, que no fim do dia é o que realmente importa.
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